segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

O MAL DA ACÉDIA SEGUNDO DOM BERNARDO OLIVEIRA, OCSO - BOLETIM 96 DA ALIANÇA INTER-MONÁSTICA


UMA TRISTEZA CORROSIVA DO DESEJO DE DEUS

Dom Bernardo Olivera*, OCSO

deOliveraO texto a seguir reproduz uma Carta Circular de Dom Bernardo Olivera, endereçada à Ordem dos Cistercienses da Estrita Observância (Trapistas), da qual foi Abade Geral durante dezoito anos. Publicada neste número dedicado aos mais velhos, não será porque a acédia os surpreende mais amiúde. A principal razão é devida ao grande interesse suscitado pelo texto no qual seu autor, por meio da tradição recebida e da tradição transmitida, nos faz compreender por dentro a acédia com seus mecanismos e os remédios contra este mal.

Carta Circular de 26 de janeiro de 2007
Queridos irmãos e irmãs,
Durante os últimos meses, devido ao acidente vascular cerebral que me atingiu, tenho tido tempo e oportunidade de ler e de meditar, experimentar e combater, analisar e conceituar um vício clássico e de todos conhecido: a acédia. Nesta carta desejo compartilhar as minhas reflexões, pois julgo tratar-se de um mal tipicamente monástico que, devido a alguns excessos ou defeitos culturais, prolifera no mundo atual sob diferentes formas.
Apresso-me em dizer que não é fácil falar da acédia; trata-se de uma experiência complexa, muito mais que a gula, a luxúria, a avareza, a ira, a tristeza, o orgulho... Por isso, é importante esclarecer o ponto de vista no qual nos baseamos. Diante do fenômeno e da experiência da acédia se podem dar, pelo menos, quatro opiniões diferentes. Vejamo-las em sua simplicidade:
● Um médico clínico poderia diagnosticar uma descompensação energética de índole orgânica;
● Um psicólogo falaria de um quadro depressivo por causas endógenas ou traumáticas;
● Um moralista opinaria que poderia se tratar de um pecado cuja gravidade dependerá da plena advertência e da deliberada vontade;
● Um diretor espiritual discernirá talvez se se trata ou não de um dos oito logismoique ataca aqueles que buscam a Deus com todas as forças de seu coração.
Todas estas pessoas abordam o mesmo fenômeno e cada uma dá a sua opinião a partir do seu ponto de vista. Todos têm alguma razão, e por isso, no discernimento de um caso particular, será preciso levar em conta todos os aspectos assinalados. Numa cultura «psicologista» como a nossa, talvez seja necessário recordar esta realidade má, objetiva e personalizada, hostil e lúcida, a quem chamamos de demônio ou Satanás.
Nesta carta me baseio na perspectiva da espiritualidade, entendida como fé encarnada e vivida. Considero, por conseguinte, a acédia como um mal que interfere, bloqueia e desvia da busca e do encontro com Deus. A acédia atenta contra a perseverança na vida cristã e monástica. É duro e lamentável dizê-lo, porém mais de um abandono da vida consagrada é inconscientemente causado por este vício corrosivo.
Baseio-me, além disto, no contexto do combate espiritual, no âmbito da ascese monástica que conduz à pureza do coração enquanto peregrinamos rumo à verdadeira pátria no coração do Pai.
Começarei acolhendo a tradição referente aos «vícios ou pecados capitais» em geral, e a acédia, em particular. Tentarei em seguida sublinhar alguns aspectos da tradição e talvez enriquecê-la a fim de transmiti-la, sobretudo, aos mais jovens.

1. Tradição recebida
1.1 Os pecados capitais
Os monges dos desertos do Egito nos ensinaram que há tendências desordenadas das quais outras emanam como de uma fonte. Encontramo-nos assim nos inícios da doutrina tradicional sobre os «pecados capitais».
Evágrio Pôntico († 399), que foi o primeiro a sistematizar esta doutrina, fala de oito pensamentos ou tendências viciosas, que o eremita terá que confrontar e vencer. João Cassiano († 425) traduziu esta doutrina no contexto cenobítico ocidental.
Todos nós conhecemos o destino que teve esta classificação dos vícios ou pecados capitais após as Instituições cenobíticas de Cassiano. São Gregório Magno († 604) teve um papel fundamental nesta evolução. Gregório segue Cassiano com algumas particularidades próprias: mudou a ordem dos vícios; a acédia desaparece da lista, embora algumas de suas manifestações sejam incorporadas à tristeza; acrescenta a inveja e tira da lista a soberba, considerando-a ser a raiz e o início de todos os pecados. Segue neste ponto a literatura sapiencial segundo a versão da Vulgata: «Initium omnis peccati est superbia» (Eclo 10, 15). Mais tarde, a vanglória e o orgulho se fundirão em um só, com o qual chegamos à lista tradicional dos sete pecados capitais, que se impôs no Ocidente a partir do século XIII.
João Clímaco († 650) e João Damasceno († 749) comunicarão esta doutrina às Igrejas do Oriente.
O quadro seguinte poderá esclarecer o que acabo de dizer. Peço desculpas por transcrever o grego e utilizar o latim. Àqueles que ignoram ambas as línguas lhes será evidente o que quero dizer.
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Nas listas orientais e ocidentais, a diferença é de pouca importância. De fato, a inveja é uma forma de tristeza por causa dos bens alheios. A acédia ficou integrada na tristeza e se sublinha a dimensão de preguiça ou ócio malsão. Pode-se dizer, definitivamente, que o ponto de vista dos autores latinos é tender mais para o dogmático e o moral, enquanto que o dos autores espirituais orientais é, sobretudo, prático e relativo à vida espiritual.
Alguns teólogos medievais expuseram magistralmente esta doutrina. Entre eles se destacam Hugo de São Vítor, Pedro Lombardo, Boaventura e Tomás de Aquino. Este último merecerá uma atenção especial.  
Séculos mais tarde, João da Cruz descreve magistralmente em sua obra «A Noite Escura» como se manifestam estes vícios/pecados naqueles que já avançaram na vida espiritual e começam a padecer a «noite passiva dos sentidos». Santo Inácio de Loiola recomenda, em seus «Exercícios Espirituais», apresentar os sete pecados àquele que realiza os Exercícios para que medite sobre eles. São Francisco de Sales, em sua «Introdução à Vida Devota», oferece uma exposição interessante e prática.
E assim poderia continuar a história. Detenhamo-nos, para concluir, num texto do Catecismo da Igreja Católica: «Os vícios podem classificar-se segundo as virtudes a que se opõem, ou também relacionando-os com os pecados capitais que a experiência cristã distinguiu, seguindo São João Cassiano e São Gregório Magno. São chamados capitais porque geram outros pecados, outros vícios. São eles: a soberba, a avareza, a inveja, a ira, a luxúria, a gula, a preguiça ou negligência (acédia)» (n. 1866).
Ainda mais uma palavra, para continuar a abrir caminho e permitir um futuro. A psicologia contemporânea aprofundou as motivações e manifestações destes vícios; a sociologia nos tem mostrado que muitas vezes estes vícios tomam formas sociais e culturais e até chegam a ser fomentados e considerados respeitáveis (por exemplo, o orgulho escondido na auto-estima, a ira disfarçada em auto-afirmação). Podemos também nos perguntar sobre a conveniência desta «capitalidade». Não haverá outros pecados que costumam ser mais básicos e geradores de outros males? Conviria também perguntar se estes pecados capitais correspondem às tendências desordenadas denunciadas também pelas outras culturas e religiões.
1.2 O mal da acédia
Experimentemos dar uma visão histórica global, a vôo de pássaro, no que diz respeito ao fenômeno da acédia. Interessam-me somente uns poucos mestres espirituais que lançaram os alicerces sobre os quais edificamos ainda hoje.
O grande teórico da acédia é Evágrio Pôntico. E tome-se a palavra «teórico» como um adjetivo substantivado que expressa a capacidade de conceituar e verbalizar uma experiência vivida. Evágrio apresenta, com penetração e humor, as diferentes manifestações da acédia. Todos nós conhecemos estes textos e não é necessário citá-los aqui, já que foram estudados com profundidade e clareza nos últimos anos.
Basta, para os nossos propósitos, assinalar alguns aspectos-chave da doutrina evagriana. A acédia é um pensamento apaixonado complexo, nutre-se da afetividade irascível e concupiscível ao mesmo tempo e costuma despertar todos os outros vícios. Isto explica por que suas manifestações podem parecer contraditórias ao extremo: indolência e ativismo, paralisia e frenesi, frustração e agressividade, fuga do bem e entrega ao mal. Daí se explica por que produz uma espécie de desintegração interior.
A tristeza é irmã gêmea da acédia, parecem-se um pouco, porém não se identificam. O que está triste encontra com mais facilidade remédio para o seu mal; o que sofre de acédia está totalmente assediado. A tristeza é uma experiência passageira e parcial; a acédia é uma vivência permanente e global e neste sentido é contrária à natureza humana.
As principais manifestações do «demônio meridiano» da acédia são: instabilidade interior e necessidade de mudança (vaguear nos pensamentos e na geografia); cuidado excessivo com a própria saúde (preocupação com a comida); aversão ao trabalho manual (ociosidade e preguiça); ativismo descontrolado (sob a capa de caridade); negligência das práticas monásticas (minimalismo de observância); zelo indiscreto com respeito a certos exercícios ascéticos (maximalismo crítico do próximo); desânimo generalizado (portal para a depressão).
Dado que a acédia ativa todos os demais vícios, não pode ser curada por uma virtude contrária. Impõe-se uma terapia variada e multiforme: lágrimas de compunção (grito não-verbal pedindo salvação); recurso à Palavra de Deus (em oposição à insinuação viciosa); meditação sobre a morte (o presente em perspectiva da eternidade); paciência, resistência e perseverança (evitando compensações e pondo a esperança no Senhor). É fácil constatar que todos estes remédios ou armas nos encaminham rumo ao encontro com Deus. Definitivamente, a acédia é fuga de Deus e só se cura com a busca concreta e paciente do seu Rosto.
João Cassiano, com respeito à acédia, é devedor e divulgador de Evágrio: segue sua doutrina sistematizando e simplificando os dados. Utiliza a palavra grega e a traduz por tédio e ansiedade de coração. Estreita a relação entre tristeza e acédia, as irmãs agora ficam idênticas ou «clonadas». Põe excessivamente em relevo uma manifestação ou sintoma, a ociosidade, enfatizando como remédio o trabalho manual. Com tudo isto, inocentemente, permite que o demônio meridiano se oculte ou tente ocultar-se pelos séculos dos séculos...
Não obstante, o ensinamento de Cassiano sobre a acédia/ tédio não carece de notas originais. A mais interessante se refere aos «filhos e filhas da acédia», a saber: a ociosidade, a sonolência, a inoportunidade, a inquietação, o vagabundear, a instabilidade de espírito e de corpo, a verbosidade e a curiosidade.
A importância de Cassiano com respeito à realidade da acédia é dupla. Graças a ele, o ascetismo do deserto do Egito passou ao monaquismo ocidental numa forma cenobiticamente inculturada. E, além disto, devido a seu esforço por sistematizar a doutrina recebida, sua influência se fará sentir nas gerações futuras.
Entre os herdeiros desta tradição encontra-se São Gregório Magno, cuja doutrina será um marco, como já observamos anteriormente: a menção da acédia desaparece de sua lista dos vícios capitais, embora alguns de seus elementos se integram no vício da tristeza. Gregório, além disto, nos diz que a malícia da acédia se origina pelo fato de ser uma tristeza em relação ao bem divino e a todos os bens que se relacionam com este bem. Ou seja, o juízo da razão se perverteu: percebe-se o bem como mal e, ao contrário, o mal como bem.
A única menção da acédia na Regra de São Bento se encontra no capítulo 48 dedicado ao trabalho manual e à leitura. Este simples fato nos faz pensar na dependência de Bento com relação a Cassiano. O capítulo começa com as seguintes palavras:
«A ociosidade é inimiga da alma; por isto, em determinados tempos devem os monges ocupar-se no trabalho manual e, em certas horas, na lectio divina» (RB 48, 1).
Advirtamos que o vício a ser combatido é a ociosidade ou preguiça. A arma que se nos é oferecida é a alternância entre o trabalho e a lectio divina. Mais adiante nos dirá o Patriarca:
«[Durante a Quaresma] designem-se um ou dois dos mais velhos, os quais circulem no mosteiro nas horas em que os irmãos se entregam à leitura e verão se não há, por acaso, algum irmão tomado de acédia, que se entrega ao ócio ou às conversas, e não está aplicado à leitura e não somente é inútil a si próprio como também distrai os outros. Se um tal for encontrado, o que não aconteça, seja castigado primeira e segunda vez: se não se emendar, seja submetido à correção regular de tal modo que os demais temam. Que um irmão não se junte a outro em horas inconvenientes. Também no domingo, entreguem-se todos à leitura, menos aqueles que foram designados para os diversos ofícios. Se, entretanto, alguém for tão negligente ou relaxado, que não queira ou não possa meditar ou ler, determine-se-lhe um trabalho que possa fazer, para que não fique à toa. Aos irmãos enfermos ou delicados designe-se um trabalho ou ofício, de tal sorte que não fiquem ociosos nem sejam oprimidos ou afugentados pela violência do trabalho; a fraqueza desses deve ser levada em consideração pelo Abade» (RB 48, 17-25).
No texto acima citado, São Bento contempla três situações diferentes. A primeira situação se refere ao tempo quaresmal, que na mente de São Bento é o tempo-modelo de toda a vida do monge (RB 49, 1). O castigo que recebe o monge acedioso nos indica que sua experiência é culpável; não se trata de uma simples preguiça ou debilidade, tratar-se-ia antes de um desinteresse ou desgosto pelas realidades espirituais. Por outro lado, não lhe falta energia nem interesse para se dedicar a outras coisas inúteis a seu propósito monástico.
O dia do Domingo é o contexto temporal da segunda situação. Havendo menos tempo de trabalho, há mais tempo de leitura e meditação. Se alguém for, voluntária ou involuntariamente, negligente ou desidioso, ser-lhe-á dado algum trabalho a fim de evitar a ociosidade. A finalidade deste trabalho é mais ascética e terapêutica que prática e produtiva. Notemos que a negligência, falta de cuidado ou aplicação pode ser causada pela desídia ou falta de desejo e motivação. O «acediosus», na mentalidade de Bento, é também um «desidiosus»: está impedindo a consolação do Espírito Santo e não está esperando a Páscoa «na alegria do desejo espiritual» (RB 49, 6-7).
Para a terceira situação, a dos enfermos ou fracos que podem ser presas fáceis de ociosidade, Bento recomenda um trabalho leve e apropriado às suas forças.
Encontramos na Regra outra série de textos sobre a tristeza. Ao celeireiro recomenda com insistência não contristar os irmãos e sentencia de forma mais genérica: «que ninguém se perturbe nem se entristeça na casa de Deus» (RB 31, 6-7.18-19). Aos mais fracos deve-se procurar para eles uma ajuda no serviço da cozinha, a fim de que «não o façam com tristeza», pois neste serviço «se adquire maior recompensa e caridade» (RB 35, 1-3). E diz algo semelhante com relação ao trabalho nos campos: a tristeza os impediria de ser «verdadeiramente monges» e de imitar os Padres e os Apóstolos que trabalhavam com suas mãos (RB 48, 7-9). Nestes três textos, o ambiente de trabalho é o terreno no qual pode florescer a tristeza que costuma ser a antecâmara da acédia, com a qual a enfermidade anula o remédio: o trabalho já não poderá ser remédio para a ociosidade...
Por outro lado, entre os «instrumentos da arte espiritual», encontramo-nos com os seguintes: «não ser apegado ao sono, não ser preguiçoso, temer o dia do juízo, desejar a vida eterna com toda a cobiça espiritual, ter diariamente diante dos olhos a morte a surpreendê-lo, ouvir de boa vontade as santas leituras, não ter inveja, nunca desesperar da misericórdia de Deus» (RB 4, 37.38.44.46.47.55.67.74). Não se referirão estas boas obras, de uma ou de outra forma, ao demônio meridiano da acédia?
A concepção beneditina da acédia é bastante similar à exposta por João Cassiano em suas Instituições cenobíticas: acédia, ociosidade e tristeza vão sempre juntas e o trabalho manual é o remédio genérico que as cura. Porém há dois dados originais e importantes. Bento apresenta a acédia como um obstáculo e um impedimento à lectio divina mediante a qual o monge e a monja tendem para Deus; a acédia esfria o paladar e impede de experimentar o sabor das coisas do céu e do próprio Deus. Por outro lado, o grande remédio beneditino contra a acédia «são os claustros do mosteiro e a estabilidade na comunidade» (RB 4, 78).
Os cistercienses do século XII são testemunhas fiéis desta doutrina do Patriarca Bento, embora não lhes falte sua própria originalidade. Escutemos somente um deles, Elredo de Rievaulx: «Como a ociosidade é inimiga da alma, deverá a reclusa evitá-la com suma diligência por ser a mãe de todos os vícios. Com efeito, fomenta a luxúria, provoca as divagações, alimenta os vícios, causa a acédia e engendra a tristeza. Semeia os piores pensamentos, desperta os afetos ilícitos, suscita os desejos desonestos. Produz o tédio da solidão, torna a cela insuportável. Que nunca, pois, lhe surpreenda ociosa o espírito do mal. Mas como nesta vida o nosso espírito está submetido ao vazio e nunca permanece estável, temos de evitar a ociosidade mediante uma ordenada variedade de ocupações e proteger nossa solidão por uma certa alternância do trabalho» (Sobre a Vida de Reclusa 6, 35; cf. Isaac da Estrela, Sermão 14, 1-4).
Santo Tomás de Aquino, em sua Suma Teológica (IIa-IIæ 35), bom conhecedor da tradição precedente, fala da acédia sob uma dupla perspectiva. Antes de tudo, considera a acédia como uma «tristeza que de tal maneira deprime o ânimo do homem, que nada do que faz lhe agrada, do mesmo modo como as coisas se tornam frias pela ação corrosiva do ácido». Mais concretamente, a acédia é um dos pecados contra o ato interno da caridade; isto é, a acédia é um tipo especial de «tristeza oposta ao bem divino do qual se frui a caridade». Como conseqüência desta tristeza, produz-se um «fastio para se trabalhar» que paralisa o impulso rumo a Deus e a suas realidades. Como podemos ver, a gravidade da acédia consiste em sua oposição à rainha das virtudes teologais, a caridade, a qual é amizade do ser humano com seu Deus. Atrevemo-nos também a dizer que Santo Tomás nos ensina a defender a própria alegria espiritual e a promover a do outro na medida de nossas possibilidades. 
Tomando São Gregório como base, ele trata, pois, de harmonizar os diferentes elencos dos pecados derivados da acédia. Falará assim de: desespero (desconfiança da graça como ajuda para vencer o mal), pusilanimidade (covardia do coração para combater a tentação), não-cumprimento dos preceitos (não-cumprimento dos mandamentos, preceitos da Igreja e deveres do próprio estado), rancor (indignação contra os virtuosos e contra o diretor espiritual), malícia (ódio contra os bens espirituais), divagação pelas coisas proibidas (instabilidade, verbosidade e curiosidade).
A acédia ocupa um lugar central no conjunto da doutrina moral de Santo Tomás. Este vício atenta contra o dinamismo do agir, que é o amor. Mais ainda, a acédia ataca o desejo de Deus e, sobretudo, a alegria que provém da união com Ele.
Acrescentemos ainda uma palavra sobre a tristeza, que nos ajudará a entender melhor a acédia. Segundo Santo Tomás o objeto da tristeza é o mal próprio; mas pode acontecer que o bem alheio seja tomado como um mal próprio, e neste sentido, pode-se sentir tristeza por causa do bem alheio, dado que ele diminui a nossa glória ou a excelência próprias: é isto que chamamos de inveja (ST, IIa-IIæ 36, 1).
Tudo o que foi dito nos ajuda a entender porque quando se fala de acédia, podemos associá-la com a tristeza, a ociosidade ou preguiça e a inveja. Concretamente, a acédia:
• É principalmente uma forma teologal de tristeza e de inveja. Nesta linha se encontram São Gregório Magno e Santo Tomás; para eles, ociosidade ou preguiça é uma conseqüência da acédia.
• Em segundo lugar, ou ainda, na prática, trata-se de um tipo de ociosidade ou preguiça com relação às coisas divinas. Nesta linha estão muitos autores espirituais e monásticos; isto é, fazem um discurso prático e consideram a acédia segundo suas conseqüências concretas e cotidianas.
Séculos mais tarde, a acédia quase não aparece no vocabulário espiritual, o que não significa que não exista. Santo Inácio de Loiola não emprega esta palavra, porém conhece bem este mal. Em suas Regras de discernimento espiritual (Exercícios Espirituais 313-336), Inácio apresenta a obra da graça divina com o nome de «consolação» e ao que se opõe à ela chama de «desolação». Pela descrição que faz desta última é fácil concluir que se trata da acédia. Ouçamos:
«Chamo de consolação todo aumento de esperança, fé e caridade e toda alegria interior que chama e atrai as coisas celestiais e a própria salvação de sua alma, acalmando-a e pacificando-a em seu Criador e Senhor» (EE 316).
«Chamo de desolação a todo o contrário da terceira regra, tal como escuridão da alma, perturbação nela, moção a coisas baixas e terrenas, inquietação de várias agitações e tentações levando à infidelidade, sem esperança, sem amor, encontrando-se cheia de preguiça, morna, triste e como que separada de seu Criador e Senhor» (EE 317).
«É próprio de Deus e de seus anjos em suas moções dar verdadeira alegria e gozo espiritual, tirando toda tristeza e perturbação que o inimigo induz, do qual é próprio militar contra tal alegria, trazendo razões aparentes, sutilezas e assíduas falácias» (EE 329).
Uma vez identificado o mal, Inácio oferece os remédios: não fazer mudanças, permanecer constantes, resistir ao mal com seus opostos, paciência...; e explica as possíveis causas: preguiça espiritual culpável, prova que contribui para o auto-conhecimento, aprender que todo bem espiritual é graça divina... (EE 318-322). Ao concluir os seus Exercícios, Santo Inácio oferece um anti-tóxico contra a acédia: a «Contemplação para alcançar o Amor». Esta contemplação é um exercício de perseverança no bem e uma forma de conservar e estimular uma vida de alegria e consolo na caridade (EE 230-237).
Lemos, finalmente, no Catecismo da Igreja Católica«A acédia ou preguiça espiritual chega a recusar a alegria que vem de Deus e a rechaçar o bem divino» (nº 2094). Ou, mais concretamente, no contexto das tentações contra a oração, dirá também: «a acédia... é uma forma de depressão devida ao relaxamento da ascese, à diminuição da vigilância, à negligência do coração» (nº 2733). Nestes dois textos, é-nos fácil descobrir a influência do Doutor Angélico e da tradição precedente.

2. Tradição oferecida
Uma tradição viva é uma tradição que se renova. Não sei o que haverá de novo no que virá a seguir, porém posso assegurar que nasceu da vida. Se trouxer luz e estímulo, missão cumprida!
2.1 Sentido das palavras
Acédia é uma palavra grega que significa basicamente: descuido, negligência, falta de interesse... Por agora nos interessa o termo latino que a traduz, isto é: tædium (tédio). Esta palavra, em português, significa: pesar, enfado extremo, grande desinteresse, profundo desagrado.
Porém existe também, no vocabulário da espiritualidade de quase todas as línguas ocidentais, o termo acédia. Neste caso significa basicamente: ociosidade/ preguiça (em oposição à diligência) e tristeza/ amargura (em oposição à alegria).
Há em latim toda uma família de palavras aparentadas com acédia, tais como: acer, acris, acre, acetum, acerbum... Isto nos leva a pensar, em sentido figurado, que a pessoa acediosa foi invadida por uma acidez que a tornou «avinagrada». Com efeito, quando o vinho doce da alegria se azeda ou se avinagra ele se torna ácido; de igual modo, quando a alegria da caridade se azeda ele se converte em acédia.
O precedente nos leva a dizer que o acedioso é um avinagrado ou azedado para todo o espiritual ou religioso. Seguindo com esta etimologia de cunho caseiro, dado que o ácido é associado com o frio (recordemos Santo Tomás), a acédia nos torna mornos por esfriar o fervor da caridade.
A língua japonesa segue um caminho diferente e mais direto no momento de traduzir a palavra acédia. Utiliza o termo mu-ki-ryoku, isto é: mu (falta, carência), ki (energia), ryoku(força, poder). Também se pode traduzir convenientemente por iya-ki, ou seja: iya (fartar-se, cansar-se, enfastiar-se), ki (energia). Aqueles que conhecem o valor e o alcance do termo ki nas culturas orientais se dão conta da terrível gravidade da acédia: o acedioso é um fatigado e um esgotado, um «desenergizado», que não tem mais dinamismo e que se enfastia da harmonia com Deus, com os outros e com o cosmo.
2.2 Testemunhos bíblicos
Vejamos agora dois textos bíblicos em relação com nosso tema. Talvez continuem nos trazendo luz para entender melhor este pensamento apaixonado tão maligno e que costuma fazer estragos nos mosteiros e fora deles.
O primeiro texto, nós o tomamos da literatura sapiencial, mais concretamente, do livro da Sabedoria, escrito originalmente em grego. Lemos: «Deus criou o homem para a imortalidade e o fez à imagem do seu ser; a morte, porém, entrou no mundo por inveja do diabo e a experimentam aqueles que o seguem» (Sb 2, 24). Este texto é rico em teologia; o autor inspirado está dizendo que Satanás teve inveja de que nós fôssemos imagem de Deus e por isto nos combate. Pois então, o que é a inveja? Tristeza do bem alheio. Satanás não aceita e nos faz guerra por causa do grande bem de nossa união com Deus. Seus seguidores experimentam a mesma inveja e a mesma morte espiritual: isso nos explica porque o «mundo» não pode deixar em paz os filhos e filhas de Deus. Sempre haverá «Cains» que assassinam Abel, «Herodes» que se entristecem e ficam violentos diante de boas novas e «Iscariotes» que recriminam racionalizadamente a Maria de Betânia por causa do seu amor.
O segundo texto provém do Saltério. Na versão latina, obra de São Jerônimo, (Vulgata), diz assim: Dormitavit anima mea præ tædio (Sl 118 [119], 28). Tenhamos presente que a palavra grega da versão dos Setenta, que Jerônimo traduz por tédio, é precisamenteacédia. E qual será a tradução da palavra hebraica que está por detrás da tradução grega? Nada novo: tugah = tristeza, aflição. As traduções modernas em português variam, dizendo coisas deste tipo: deprimida de pesar, chora de tristeza, desafoga em lágrimas pelo pesar... Como podemos ver, esta passagem bíblica nos permite dizer que São Gregório Magno e Santo Tomás não andavam errados. Podemos também acrescentar que Cassiano associa a acédia com o sono e São Bento aconselha: não seja dorminhoco (cf. RB 4, 37).
Mas há outra forma de entender esta palavra inspirada. O texto original hebraico pode traduzir-se assim: meu desejo (nefesh) se derrete de tristeza. Isto é: a tristeza oprime o meu desejo fundamental que me lança para Deus. Sabemos que o preguiçoso, figura freqüente no livro dos Provérbios, é uma pessoa disfuncional, pois seu desejo, ao se encontrar fechado sobre si mesmo, o leva à morte (cf. Pr 21, 25).
2.3 Combate e desejos desordenados
O combate espiritual começou imediatamente após o pecado original e continuará até o fim dos tempos: porei inimizade entre ti (a serpente) e a mulher, entre a tua descendência e a dela: ela te pisará a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar (Gn 3, 15). São Paulo fundamenta este combate na dinâmica do mistério da salvação (Cl 2, 15; Ef 6, 11-12; 1 Cor 15, 24-26) e nos oferece as armas espirituais apropriadas (Ef 6, 11-17; 1Ts 5, 8; cf. 1Pd 5, 8-9).
No campo de batalha se encontram a vida e a morte: a vida em Deus e a morte longe dele.
Os monges receberam de bom grado esta herança, de modo que as expressões «militar por Cristo» e «milícia de Cristo» se referem desde o início à vida monástica. Nossos Pais cistercienses o sabiam muito bem. São Bernardo, recordando o texto paulino: «Eu luto não como alguém que desfere golpes no ar» (1Cor 9, 26), exclama: Esta verdadeiramente é a trombeta da milícia, estas são as palavras de um capitão animoso que luta valorosamente(Sermão para a Festa de Todos os Santos 2, 2).
Os desejos humanos, como manifestações de uma carência, subjazem nos sentimentos. Isto é, estes desejos movem a afetividade e esta, por sua vez, suscita pensamentos apaixonados. Os pensamentos, fechando o círculo, podem incentivar os desejos: um pensamento apaixonado de cólera, causado por um desejo frustrado, pode engendrar um desejo de vingança... e já estamos em plena guerra.
Por isto podemos dizer que o combate clássico contra os pensamentos apaixonados oulogismoi é, definitivamente, uma luta contra os desejos desordenados subjacentes a tais pensamentos, carregando-os de paixão. Os grandes mestres da arte espiritual se referiram a estes desejos de maneiras diferentes (espíritos, demônios, pensamentos, aflições, afetos, paixões, apegos, apetites, vontades, vícios, pecados capitais...) e nos ensinaram a combatê-los e a dar-lhes morte em combate singular mediante a mortificação, a abnegação e a humildade; trata-se, definitivamente, de despojarmo-nos do homem velho a fim de nos revestirmos do homem novo com a ajuda da graça divina.
No campo de batalha se encontram a vida e a morte: a vida em Deus e a morte longe dele. Ou, em outros termos, num lado temos o desejo fundamental de Deus, que nos unifica na lembrança divina e permite nos realizarmos como pessoas humanas: os afetos e pensamentos que surgem daí guardam relação com o Senhor. No outro extremo do campo está a desintegração pessoal e o esquecimento de Deus. Próximo deste extremo se fundamenta a causa de nossos males, os desejos, afetos e pensamentos definidos por objetos ou fins maus. Cada vez que estes desejos e pensamentos apaixonados nos invadem, estamos neutralizando a memória de Deus, nos esquecemos dele e desintegramos nosso interior debilitando nosso desejo fundamental de Deus.
Quando queremos identificar os principais desejos desordenados, voltamos a nos encontrar com os pecados ou vícios capitais:
• Desejos desordenados de alimentos: gula
• Desejos desordenados de prazer sexual: luxúria.
• Desejos desordenados de bens materiais: avareza.
• Desejos não-realizados e reação ativa diante da frustração ocasionada: ira.
• Desejo debilitado ou desídia com relação a Deus e às coisas espirituais: acédia.
• Desejos desordenados de aparecer e de sobressair: vanglória.
• Desejos desordenados da própria excelência: soberba.
Estes desejos costumam seguir um processo «in crescendo» bastante fácil de se reconhecer. Nunca é demais dizer que quanto antes os combatermos, maior será a possibilidade de vitória.
• Despertar dos desejos e conseqüente sentimento.
• Diálogo com os pensamentos gerados.
• Fascinação diante da possibilidade de relegá-los a segundo plano e temor de sucumbir a eles.
• Combate a fim de rechaçá-los ou vacilação diante dos inimigos.
• Derrota ou vitória perante os mesmos.
• Cativeiro no caso de uma eventual derrota ou liberdade como fruto da vitória.
Vejamos três princípios gerais e importantes a se levar em conta antes de se entrar em combate. Acima de tudo tenhamos sempre em conta que não somos estes desejos, só podemos nos identificar com o desejo fundamental e constitutivo que nos abre e lança rumo ao Outro e aos outros a fim de nos realizar pessoalmente. Em segundo lugar, estes desejos vêm e vão do mesmo modo que os sentimentos e pensamentos que os originam. Por último, se não os alimentarmos com outros desejos, sentimentos ou pensamentos, dissipar-se-ão como bolhas de sabão.
De igual modo, é também útil conhecer as quatro formas tradicionais de combater estes desejos desordenados.
• A primeira forma é de atacá-los sem demora uma vez reconhecidos; isto pode ser feito centrando a atenção em algo oposto ou diferente do objeto do desejo. Esta prática costuma ser útil e recomendável quando se trata de desejos que suscitam pensamentos repetitivos e compulsivos.
• A segunda maneira é substituir o desejo desordenado com o desejo de Deus e de seu Reino. Esta é a solução mais apropriada para desejos e pensamentos auto-destrutivos e que conduzem a estados depressivos.
• A terceira forma consiste em observar simplesmente, com atenção, o desenvolvimento do desejo, os sentimentos que suscita e os pensamentos que se ocasionam. É assim que se desvanecerão e não lograrão se fortalecerem como se fossem nos tornar cativos. Neste caso, recordemos que sentir não é consentir.
• Por último, a quarta maneira é de entregar-se desinteressada e gratuitamente a alguma boa obra a serviço e em utilidade do próximo.
Digamos, por último, que quando estes desejos desordenados se converteram em vícios ou formas habituais de se fazer o mal, haverá que desenraizá-los mediante o exercício perseverante e assíduo das virtudes opostas: temperança, castidade, generosidade, paciência, diligência, modéstia, humildade e caridade.
Apesar de tudo o que foi dito, impõe-se uma palavra particular sobre a luta contra a acédia. Sendo desídia de Deus e dos meios que nos conduzem a Ele, é difícil combatê-la com simples virtudes, desvio da atenção, serviço caritativo, vigilância... O grande mestre da acédia, Evágrio Pôntico, e com ele todos os grandes mestres espirituais do Oriente e do Ocidente, nos dizem em uníssono: hypomoné, hypomoné, hypomoné! Isto é, paciência e perseverança.
«No tempo das tentações é necessário não abandonar a cela, por mais razoáveis que sejam os pretextos que se nos ocorram. Ao contrário, há que se permanecer sentado no interior da cela, ser perseverante (hypomoné) e receber com coragem aos que o assaltam, a todos, especialmente ao demônio da acédia que, por ser o mais pesado de todos, prova a alma no mais alto grau, e fugir de tais lutas e evitá-las torna alguém inábil, covarde e traidor do espírito» (Praktikós 28).
O próprio Jesus faz desta virtude quase um absoluto para a salvação eterna: Pela perseverança (hypomoné) salvareis as vossas almas (Lc 21, 19). Uno agora a minha voz à do Abade de Claraval: a exortação que segue, embora originada num contexto diferente do nosso, parece-me totalmente oportuna.
«Que me resta agora, caríssimos, senão vos admoestar à perseverança, a única que dá a glória aos homens e o prêmio às virtudes? Porque sem perseverança, nem aquele que luta consegue a vitória nem o vencedor recebe a palma. Ela é o vigor dos robustos, o cume das virtudes; é nutriz do mérito, mediadora do prêmio. É irmã da paciência, filha da constância, amiga da paz, nó das amizades, vínculo da unanimidade, baluarte da santidade. Prescinde da perseverança e o serviço fica sem recompensa, o benefício sem gratidão, a tenacidade sem elogio. Além disto, não aquele que começa, mas o que persevera até o fim, esse se salvará» (Carta 129, 2).
Por fim, recordemos que o impossível para nós é bem possível para Deus. Ele só espera que acolhamos como pudermos o seu dom. Por isto, se nos sentimos demasiado pequenos e débeis para combater o demônio meridiano da acédia, aceitemos inicialmente, este paliativo que me foi recomendado por Santo Tomás de Aquino: uma ducha e uma boa sesta (ST Ia–IIæ, 38, 5).
Restaram-me muitas coisas no tinteiro; possibilidade de continuar o tema em outra oportunidade? Dependerá de duas condições: primeiramente, se continuo a crescer em experiência; depois, se esta carta for bem recebida.
Definitivamente, irmãos e irmãs, a acédia é um estado interior bem definido não obstante suas múltiplas manifestações. Este detestável pensamento apaixonado corrói a satisfação de amar e de pertencer ao Senhor. Porém o mais detestável deste vício propriamente satânico é que paralisa e congela, tortura e estrangula nosso desejo fundamental de Deus. Desejo sobre o qual se baseia a nossa busca de sua Face e que faz a vida monástica ser o que ela tem que ser: uma vida asceticamente orientada para o Mistério a fim de misticamente saboreá-lo.
Com um grande e fraterno abraço, em Maria de São José,
† Bernardo Olivera, OCSO.
* Dom Bernardo Olivera, OCSO, foi Abade Geral da Ordem Cisterciense da Estrita Observância (Trapistas), de 1990 a 2008, e é atualmente Abade da Abadia de Nuestra Señora de los Angeles, em Azul (Argentina).

Traduzido do castelhano por Ir. Gabriel Vecchi, OCSO,
Abadia de Nossa Senhora do Novo Mundo,
Campo do Tenente, PR


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